Quando o real e o falso se confundem, manter a confiança em nossas percepções é um desafio urgente
“O que é a verdade?” (João 18:38)
A pergunta feita por Pôncio Pilatos a Jesus atravessa os séculos. Hoje, ela retorna com força em meio à enxurrada de conteúdos gerados por inteligência artificial. Imagens hiper-realistas, vozes clonadas e deepfakes colocam em xeque aquilo que nossos sentidos sempre tomaram como certo. O que vemos é realmente confiável?
Em maio deste ano, o Google lançou o Veo 3, sistema que gera vídeos tão realistas que se tornam quase indistinguíveis da realidade. Essa tecnologia não somente é um simulacro de imagens e sons, mas redefine o que entendemos como verdade visual. O irreal produz poder de convencimento por seus próprios meios. Seria isso um prelúdio da quebra da confiança nas imagens digitais?
Se antes tínhamos certezas, agora o que vemos e ouvimos pode ser inteiramente fabricado, e mais, com uma aparência quase inquestionável. Não se trata apenas de separar verdade da mentira, mas também de reconhecer os efeitos de verdade. Nesse contexto, o metaverso, como espaço onde tudo pode ser fabricado, é ao mesmo tempo um risco e um sintoma. Ele não apaga a verdade, mas expõe o seu esvaziamento de sentido. O metaverso revela um mundo em que a verdade se dissolve entre aparências bem-feitas, entre identidades modeladas e experiências hiperestéticas.
Imersos no emaranhado da pós-verdade, em que as emoções e crenças têm mais peso que os fatos objetivos, como analisa o semioticista Eric Landowski, a experiência da verdade mudou de natureza. São metamorfoses: ela é hoje uma experiência sensível, mais do que um dado fixo. Vivemos um tempo em que a verdade “se acredita por contágio”. Assim, desfazer a ideia de verdade pode parecer sedutor, especialmente em tempos em que toda afirmação é instável e toda imagem pode ser forjada. Mas talvez o mais interessante não seja abandonar a ideia de verdade, e sim reconfigurá-la: não como posse, mas como processo; não como certeza, mas como abertura; não como um dado, mas como ato relacional e ético.
A comunicação digital empobrece as relações humanas porque elimina aquilo que há de mais fundamental no encontro com o outro: o toque, o olhar, o silêncio entre as palavras. No lugar disso, temos vozes sem presença e rostos filtrados, em uma espécie de ilusão interativa que simula proximidade, mas reforça o isolamento. Falta à comunicação digital a intensidade que só a presença é capaz de proporcionar. O excesso de barulho impede uma escuta contratual com o outro. Eleva-se o efeito da solidão, numa engrenagem central desse mundo onde o outro só existe enquanto reflexo do meu desejo de ser visto. Todos falam, ninguém escuta; todos se produzem como marca, imersos na lógica da autopromoção e do marketing, falta a presença. A internet não é espaço de vínculo, mas de performance. A tecnologia redefine o que chamamos de humano, e talvez o que estejamos perdendo não seja a comunicação, mas a própria experiência de estar com o outro de verdade.
A inteligência artificial não tem coração. O pensar com o coração avalia e sente espaços antes de operar conceitos. A tonalidade afetiva da confiança no alcance do momento está na emoção, no começo do pensamento. A IA é apática. Ela calcula. Ela não tem acesso a horizontes. Ela processa dados constantes, previsíveis e controláveis ao toque na tela. Será que não estamos querendo fugir de nossas realidades, para adentrarmos a um mundo imaginário?
Agora, como criar uma agenda positiva em relação à verdade? Talvez o desafio esteja menos em resgatar uma ideia fixa de verdade e mais em propor práticas sensíveis que reabilitem a confiança simbólica. Uma agenda positiva exige um novo compromisso com o acontecimento da verdade como encontro. A era da curadoria nos exige saber o que realmente importa. Orquestrar a informação, filtrando ruídos e concentrando nossa atenção no essencial, é um pensamento inaugural para a sobrevivência da confiança na comunicação contemporânea.
A IA não atinge nível profundo e conceitual do saber. Ela não conceitua os resultados que calcula. O cálculo é diferente do pensamento porque não forma conceitos e não avança de uma conclusão para outra. A IA aprende com o passado. O futuro calculado não é verdadeiro no sentido completo da palavra. Ela carece da negatividade da ruptura, que deixa surgir o novo no sentido enfático.
Em meio a esse cenário de crise da verdade, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua obra “A Salvação do Belo”, nos alerta para um fenômeno atual: o belo, na contemporaneidade, perdeu sua profundidade e foi reduzido ao que é simplesmente agradável e prático: a curtida, o like. Mas, para Han, o verdadeiro belo é aquilo que provoca, inquieta, que tira da zona de conforto aquilo que toca o cerne da emotividade.
Esse olhar nos convida a valorizar a alteridade, a presença real do outro, que reconhecemos em sua diferença e legitimidade como sujeito no mundo. É na alteridade que talvez resida uma das saídas para reabilitar o credível na era da pós-verdade.
O pensamento humano é mais que cálculo e resolução de problemas, é uma ponte entre a subjetividade e a objetividade, o abstrato e o concreto, a sensibilidade e o raciocínio, o imaginável e o sensível, a dor e a beleza da condição humana. A questão da presença é que o pensamento humano não está apenas no mundo, mas se envolve com ele de forma plena e sensível, enquanto a máquina apenas calcula sobre ele.
Num tempo em que tudo está disponível e alcançável, nenhuma atenção profunda é formada. O foco se dispersa. O olhar para o belo não se detém, ele vagueia como um caçador. Somente as coisas tornam o mundo visível. Elas possuem visibilidade, enquanto o intangível as apaga.
Como sugeria o educador Anísio Teixeira em sua defesa da educação integral, pode-se dizer que a inteligência verdadeira só existe quando pensamento, ação e emoção caminham juntos, algo que uma máquina, por mais sofisticada que seja, não alcança, não vive. Apenas simula. A tecnologia não é indício de progresso moral da humanidade. Ética não é algo que uma máquina pode simular é um compromisso humano, que exige acautelar-se constantemente diante dos desafios e riscos éticos que as novas tecnologias apresentam.
Essa dinâmica do contágio simbólico amplifica a circulação de notícias falsas, dos simulacros políticos, das realidades fabricadas. A confiança está em crise porque os sentidos: visão e audição já não são garantias sólidas de verdade. É urgente reencantar os sentidos para compreender as complexidades da condição humana.
Logo, precisa-se buscar novos critérios para a verdade, que ultrapassem o que é imediatamente percebido. Para além de uma checagem rigorosa, responsabilidade figurativa é essencial para redefinir pactos de confiança. A confiança foi capturada pelos afetos e os sentidos estão em crise. Espaço privilegiado para a dúvida como veridicção.
E por fim…Diante do desafio contemporâneo imposto pela tecnologia e pela pós-verdade, retoma-se a pergunta de Pilatos: O que é a verdade? É provável que a verdade não seja uma resposta fixa, mas sim um convite a exercitar nossa sensibilidade crítica para navegar entre o real e o irreal.
A pergunta de Pilatos precisa ser atualizada: O que ainda pode fazer sentido como verdade? A resposta, certamente, está em reeducar nossa sensibilidade, reconhecer os limites da percepção, mas também assumir a responsabilidade de reconstruir novos pactos de confiança simbólica. Afinal, a sociedade não se transforma por novas máquinas, mas por novas formas de comportamento.
Mauri Oliveira é jornalista e radialista. Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pesquisa as potências da linguagem radiojornalística, práticas de escuta e suas relações com a sustentabilidade no Alto Sertão da Bahia.
Foto: CARAVAGGIO. Ecce Homo. [S.l.], c. 1605. Pintura.
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