Músicos mogianos que inovam ao incluir mensagens filosóficas em uma mistura de rock com brasilidades, jazz e outros ritmos já podem ser ouvidos nas plataformas digitais
“A arte é luta. Cantar é lutar. É lutar para cantar, para ser ouvido. Dizer é conjurar. Conjurar palavras, e palavras são feitiços. E a palavra que impera em nossas vidas é a ‘crise’, o desencaixe da contradição, vida em desassossego, em desencanto. Crise do ‘eu’, crise social, crise política, a crise do capital, a crise do drama moderno, o desencontro da boca, da fala e do sentido, do canto, da música, da melodia”. Essa é a frase inicial do disco de estreia da banda Drama em Crise, lançado no último dia 8 em um show no Galpão Arthur Netto, em Mogi das Cruzes. É como um grito de alforria, um desabafo que estava há muito trancado, preso, escondido. Gera estranheza na mesma medida em que gera curiosidade. E é assim, impossível de parar de ouvir, em cada uma das 15 faixas, já disponíveis nas plataformas digitais.
O grupo formado pelos mogianos Gabe Fortunato (guitarra e voz), Sérgio Jomori (baixo), Leo Zocolaro (bateria) e Guilherme Araújo (flauta), não é nada convencional. É rock? É jazz? É bossa nova? É discurso em formato “spoken word”? É tudo isso, é nada disso, é muito mais. É muito original, próprio e anacrônico, muitas vezes gravado de maneira analógica, nostálgica e contraventora.
“Não fazemos uma arte bem definida. Sentimos que a forma ‘atual’ da música, seja do rock, da música brasileira ou de outros ritmos e estilos, não comporta as mensagens e sentimentos que sentimos a necessidade de expressar”, dizem os músicos, que apostam em uma abordagem “meio experimental/meio teatral”, com temáticas ligadas a “questões sociais, urbanas e existenciais” contidas em músicas que se ligam tematicamente a partir de cinco atos cronológicos.
Tudo começa com o ‘Prólogo’ e a já citada ‘A Crise do Drama Moderno’, uma “declaração de intenções” que funciona como introdução à obra e prepara o ouvinte para o que vem a seguir.
Imediatamente após a primeira etapa, as músicas ‘Apolo e Dionísio’ e Hiroshima Meu Amor’, junto do single ‘Terra em Brasa’, compõem o primeiro ato do projeto, ‘As Chamas’. Os temas respectivamente são relacionamentos, com influência post-punk; paixão e tragédia, com um ponto de vista já sem romantismo; e luta social no Brasil, com ritmos nordestinos que dialogam com os filmes de Glauber Rocha.
O segundo ato, ‘As Lágrimas’, é composto pela música/vinheta ‘Choro-Sonho Coletivo’, com participação do artista Gabriel Coiso; por ‘Elogio à Melancolia’, com palavas declamadas sobre a dominação que reside na tristeza; e ‘A Gaivota’, que explora, de forma aberta, os temas e personagens da peça homônima de Anton Tchekhov, com participação do violonista Matheus Valiengo e a pianista Juliana Rodrigues.
Na sequência, ‘A Finitude’ é o próximo ato, que apresenta a vinheta ‘Transicional’, construída a partir de recortes de falas de cinema e teatro colados sobre uma base improvisada; ‘Rei da Escócia’, inspirada em ‘Macbeth’, de William Shakespeare, mas sem contar o enredo da peça, e sim oferecendo uma interpretação livre sobre a mesma, outra vez com os violinos de Matheus Valiengo e as teclas do piano e sintetizador de Juliana Rodrigues; e ‘Vertigem’, que tem clipe no YouTube e discorre sobre “uma angústia existencial frente a vida no capitalismo e a rotina opressiva”.
‘A Criatura’, penúltimo ato, reúne a vinheta ‘Apoteose Anticósmica’, com o artista Wiencke e os sintetizadores filosóficos de Danilo Sevali, que falam de um Leviatã que controla a existência caótica na Terra, com ‘Terror e Miséria no Brasil’, em formato “spoken words” e missão antifascista, ‘Status Quo’, que vai na linha tradicional punk rock e faz crítica explícita ao mundo moderno, e outra neste mesmo gênero, ‘SP’, angústia urbana já gravada em outro projeto musical, só que aqui apresentada de maneira “mais torta”.
Por fim o epílogo é com ‘Rasga Coração’, que não joga luz, mas sim caos, sobre a peça ‘Choros No.10’, de Heitor Villa-Lobos, adicionando estranheza inquietante e improvisada ao som do combo formado por synth, flauta e guitarra.
Se parece confuso, é porque é para ser. É a mente humana, em ambientes e situações atuais, traduzida em música. É uma pulsante amálgama de sentimentos e de referências, e está no livro a ‘Teoria do Drama Moderno’, de Péter Szondi, uma dica para entender a proposta. O autor fala de peças teatrais que vão em direção oposta ao drama tipicamente “burguês”, sugerindo um novo olhar. É o que fazem os músicos aqui: instigam novas perspectivas no imaginário do ouvinte.
Outra maneira de tentar entender os conceitos ora claros e ora abstratos é analisando a capa do álbum, que leva o nome da banda, ‘Drama em Crise’. Os integrantes fizeram como se fazia antigamente: reuniram amigos em uma tarde para, juntos, rindo e com as mãos na massa, construir e fotografar uma maquete.
Foram semanas colecionando bonequinhos diferentes para então reunir todos em uma cena com estética ímpar. Há uma figura humanóide com cartola ao lado de um monstro, tem bonecos feitos de biscuit, de plástico, de crochê. Tem pintura, desenho e muitas cores. Lembra um picadeiro de circo, mas distorcido, com diversos animais, formatos e referências singulares.
É como a sonoridade das canções: “brasileira, de vanguarda, com toques de experimentalismo e pós-punk” e a dose certa de improviso, experimentação de mixagem e ousadia.
Entre as palavras e riffs é possível encontrar sussurros, gritos, camadas, instrumentos sobrepostos. “É a ‘crise’ enquanto conceito que organiza muito da nossa vida moderna e também marca a nossa produção artística”, conclui o grupo que pode ser ouvido nas plataformas digitais, está nas redes sociais e tem outras experiências enquanto coletivo artístico, já tendo, por exemplo, organizado três edições de um festival de curtas-metragens em Mogi das Cruzes.
Crédito fotos: Divulgação
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