O consumo se tornou uma das formas mais efetivas de entender o cotidiano contemporâneo e as mudanças sociais. Não apenas por estar presente de forma global, mesmo nas camadas mais populares e nas diferentes configurações político-econômicas, mas também por expressar modos de vida e vínculos de sentido entre o sujeito e o contexto que o cerca. A própria falta de consumo comunica e auxilia a compreender as questões de desigualdade, desemprego, ou mudanças culturais, por exemplo. Nas relações com as marcas emergem emoções, resgates de valores, rituais de busca, uso, descarte, entre outros, que superam o aspecto pejorativo do consumismo. Dessa forma, podemos pensar o consumo como uma das possibilidades de entender o Brasil durante e após a pandemia.
A relação entre consumo e pandemia no país tem sido o foco de diferentes pesquisas. O estudo Vida na Quarentena, desenvolvido pelo Google em parceria com a MindMiners, relata que 56% dos entrevistados tiveram queda na renda, enquanto 23% dizem ter perdido o emprego. Nessa situação de instabilidade econômica e incertezas geradas no âmbito da saúde, a busca de informação sobre o assunto permanece. As dúvidas se espalham em diferentes setores, ampliando a preocupação com outras pautas. Racismo e violência são alguns dos temas que mobilizaram os entrevistados, ainda que 39% comente sobre a sensação de impotência para atuar nesse cenário.
O consumidor brasileiro, que conta com marcas de bancos e cervejas entre as mais valiosas, enquanto mundialmente as empresas de tecnologia lideram esses rankings, parece sustentar uma expectativa nas empresas em assumir um posicionamento social efetivo no contexto pandêmico. Sete em cada dez pessoas acreditam na atuação das marcas durante esse momento, mas esperam que a ação seja comprometida por meio de doações e manutenção de empregos. O que mostra a pesquisa Vida na Quarentena é o anseio por mudanças, para encontrar um reencaixe que retome o sentimento mínimo de segurança. Algo que supere a dicotomia nociva entre saúde e economia.
O consumo midiático e a compra online também são comportamentos em deslocamento durante o período. A pesquisa Kantar Covid-19 Barometer, aponta um pico na audiência televisiva, que se estabiliza em níveis superiores do patamar anterior ao distanciamento social. As campanhas publicitárias não ficaram de fora da discussão sobre a covid-19. Além da publicidade social, a publicidade de causa está presente com empresas do setor financeiro e lojas de departamento. YouTube, redes sociais e uso de games também são consumos midiáticos crescentes pelos dados das pesquisas. Ainda que os estudos não aprofundem qual o discurso utilizado na comunicação e sua autenticidade com as empresas, vemos que o próprio consumidor assume o papel de vigilância e tem no seu comportamento uma forma de contrapor os esforços de marca vistos como não coerentes. O crescente consumo no ambiente digital abre espaço para a circulação dessas avaliações, mas também sobrepõe a crítica sem rosto, a divulgação de falsas notícias e o cancelamento sem a discussão aprofundada para uma mudança nas ações mercadológicas.
Ainda na lógica digital, os índices de compra online subiram 47% no primeiro semestre de 2020, sendo a maior alta nos últimos vinte anos, conforme a 42ª pesquisa WebShoppers da Ebit em parceria com a Nielsen. Novos adeptos da compra online assumem esse lugar e, embora o sudeste tenha grande impacto no resultado, as regiões norte e nordeste surpreenderam com o desempenho de faturamento e vendas no período. Com o aumento da demanda, as entregas tiveram o prazo estendido, em muitos casos as operações físicas foram mantidas em conjunto com lojas online e ocorreu a disseminação do uso de aplicativos de entrega. Aliás, outra pauta reclamada por meio de manifestações no momento: os direitos trabalhistas e condições laborais dos entregadores. Nesse breve compilado do consumo na pandemia fica registrado o contraste entre resultados de compra, demandas sociais e experimentações de novas práticas na reinvenção do cotidiano.
Alguns hábitos estão na agenda do consumidor para o cenário pós-pandêmico. A Kantar destaca comportamentos que o consumidor pretende manter, como o cuidado pessoal nos segmentos de higiene, alimentação e educação, além da valorização do comércio local e a busca por preços mais convidativos. Parece que o enfrentamento com a finitude despertou a valorização do eu, mas de um sujeito conectado com o mundo. Artistas em suas lives, sustentam o faturamento, mas também são os novos mediadores de temas como política, espiritualidade e educação. Evidenciam como a mídia e um letramento midiático atravessam outras instituições.
Na tentativa de conexão com o mundo, as plantas são trazidas para o lar, uma floresta se puder. Os passeios mascarados de bicicleta são divulgados nas mídias sociais, os exercícios em casa são compartilhados com o trabalho, a elaboração de receitas de uma panela só vira pauta daqueles que podem ficar em casa. Em meio à tensão entre indivíduo e sociedade ressoa a cultura da carteirada, do desencaixe de que a igualdade é ofensiva. Muitos desses momentos ocorrem durante o consumo material ou cultural: no bar, na entrega de comida, no passeio à beira mar. Novamente as contradições podem ser analisadas e destacam outros tantos desrespeitos que levam à posicionamentos afirmativos de reconhecimento.
Para os negócios, os dados dessas pesquisas podem auxiliar a reconfigurar os modelos de atuação, em uma perspectiva inovadora, que consiga associar novos comportamentos e desejos às condições operacionais da empresa. Integração de canais de distribuição e comunicação, proximidade à realidade local e social, assim como estratégia de precificação parecem fazer sentido. Essa visão leva a repensar fornecedores, processos, estrutura organizacional, mantendo margens interessantes ao negócio. Mas, sobretudo, evoca a responsabilização de gestores no entendimento das contradições nacionais e do comportamento ativo dos seus consumidores, sufocados pelo choque que a convivência consigo mesmo e com o mundo fragilizado evidenciou.
O desafio exposto aqui não é uma visão simplificada, que tenta retirar do objetivo central das empresas o lucro, ou negar responsabilidade de outros setores, mas que entende o desempenho organizacional atrelado à adequação para novas conjecturas e para o desenvolvimento coletivo. Por isso, depende da compreensão mais próxima do que é o país, em suas várias camadas. A ampliação dos estudos de comportamento de consumo pode ser guiada por dados, mas precisa chegar ao sujeito e suas interações, que não estão apenas no virtual e no digital. Conciliar os dados ao olhar de um cotidiano pandêmico pode construir ações que façam sentido aos consumidores e aos cidadãos.
Clóvis Teixeira Filho é professor na área de Gestão, Comunicação e Negócios do Centro Universitário Internacional Uninter, Mestre em Administração e Doutorando em Ciências da Comunicação.
Leave a Reply