Por Peter Alouche*
Qual o panorama das cidades brasileiras durante a pandemia e como será depois? Responder a esta pergunta, quando tudo são incertezas, é bem difícil. Eu gostaria muito de ser otimista, mas preciso ser realista. Estamos vivendo um período absolutamente surreal que foi, aliás, magistralmente bem descrito, 70 anos atrás, por Albert Camus no “La Peste”. Enfrentamos um vírus extremamente inteligente e astuto, que está ganhando a batalha em todas as frentes. O medo e a insegurança tomaram conta da sociedade do Brasil e do mundo. O vírus abalou o setor de saúde, transformando-se em pandemia. As mortes se multiplicam aos milhares. A economia está arrasada, os investimentos inseguros e improváveis e o desemprego generalizado. As aulas estão suspensas e as pessoas confinadas. Parece que está todo mundo vivendo o “Esperando Godot”, de Samuel Becket. Todos nós tentamos nos proteger com máscaras e nos distanciarmos uns dos outros, com receio de sermos contaminados. O “inferno são os outros”, como diria Jean-Paul Sartre.
Nesse panorama pessimista, para não dizer apocalíptico, como estão se comportando nossas cidades durante a pandemia e como estarão depois, em especial, quanto à sua mobilidade e seu transporte público?
Há mais perguntas do que respostas. Mas uma coisa é certa: a pandemia nos mostrou duas realidades importantes. Uma é de que as cidades brasileiras não estavam preparadas a tal sismo, como aliás poucas no mundo. Não foram estruturadas como cidades inteligentes e, por isso, temos que descobrir o caminho para torná-las inteligentes. Outra realidade é que cometemos erros históricos no Planejamento e na Mobilidade de nossas cidades. Temos que corrigi-los e não podemos cometê-los novamente.
Mas como tornar nossas Cidades Inteligentes? Cidade Inteligente é aquela que tem como foco a qualidade de vida dos seus cidadãos. Para isso, ela necessita criar:
- Um meio ambiente inteligente, isto é, ar não poluído, energia eficaz, saneamento do esgoto, tratamento do lixo, etc.
- Um planejamento urbanístico inteligente, com muito verde e áreas livres, conjuntos habitacionais estruturados, zonas industriais e comerciais bem planejadas, para o bom convívio social.
- Uma população com modo de vida inteligente, isto é, pessoas educadas, respeitosas das leis e dos outros, que amem de fato sua cidade.
- Uma economia e uma gestão pública inteligentes para haver sustentabilidade.
- Por fim, uma Mobilidade Inteligente, seguindo o conceito da “Mobilidade como Serviço” (MAAS – Mobility As a Service).
O conceito de MAAS surgiu na Finlândia e se transformou, para as cidades modernas, numa inovação disruptiva. A UITP (União Internacional de Transportes Públicos) o adotou como diretriz. Nele, o usuário do transporte é o centro das atenções. Os seus deslocamentos têm que ser ágeis, seguros, fluidos, flexíveis e com acesso fácil. Tudo perfeitamente integrado “on-line”, desde a origem até o destino das viagens, com o uso de todos os modos de transporte disponíveis, individuais ou públicos, motorizados ou não.
As cidades Inteligentes e o MAAS necessitam de muita tecnologia avançada com ferramentas de TI e de telecomunicações poderosas, tais como Internet 5G, BIG DATA, Georreferenciamento, Internet das Coisas, Inteligência Artificial, Nova Geração de Sensores, Reconhecimento Facial, Moeda Criptografada e, por fim, Segurança Cibernética. Toda essa tecnologia oferece certamente riscos que não podem ser ignorados, como a invasão da privacidade das pessoas, a ação dos hackers e principalmente o controle político dos cidadãos, lembrando “1984”, a famosa obra de Orwell. O Brasil está muito avançado no domínio das tecnologias de ponta e não vejo grandes riscos, entre nós, em termos de controle político. Nosso problema não é tecnológico, mas sim de opções equivocadas que fizemos no passado e erros que cometemos. Precisamos corrigi-los e não cometê-los novamente.
Para o transporte individual, temos que investir nas ciclovias, como faz Paris, e deixar de privilegiar o carro particular. No Transporte Público, temos que investir nos modos ecológicos, eficientes, rápidos e baratos. A escolha adequada dos modos para uma Cidade é fundamental para seu planejamento e deve seguir critérios técnicos e não políticos, porque tem grande impacto urbano e ambiental, a médio e longo prazos. A questão da oferta, face à demanda, é fundamental nessa escolha para garantir um transporte de qualidade, no horizonte do projeto. Qualidade da oferta significa segurança, tempo reduzido na viagem, velocidade, acessibilidade e conforto, além da flexibilidade para sua adaptação às condições locais. A tecnologia escolhida precisa ser ecologicamente limpa, ser conhecida e comprovada e que possa permitir uma operação e manutenção simples e baratas. Mas não é suficiente selecionar a melhor tecnologia. É necessário implantá-la adequadamente. A questão econômica e financeira é obviamente determinante, por isso é necessário um estudo de engenharia financeira que inclua os benefícios e as externalidades da tecnologia. O grande erro que nossas cidades têm muitas vezes feito, foi escolher um modo de transporte inadequado, com uma visão política de curto prazo, onde custo e recursos foram os únicos critérios.
Como erros cometidos, há muitos casos que eu poderia citar. Vou me ater a alguns exemplos emblemáticos. A preferência por projetos de BRTs que, em princípio, deveriam ser corredores de ônibus, com veículos de alta capacidade, ecologicamente limpos, para oferecer um serviço rápido, eficiente e de qualidade, mas têm sido mal implantados e se tornaram um transporte ineficiente, inseguro, barulhento, que degrada muito o entorno. Exemplos claros disso são os 125 km de corredores no Rio de Janeiro e os de São Paulo nas Avenidas Santo Amaro e Vereador Diniz. Nossas cidades, entranhadamente, não têm considerado a opção do VLT, que é um sistema de transporte elétrico ideal para um corredor de média capacidade e cuja implantação é geralmente fruto de um projeto associado a uma renovação urbana. É bem mais abrangente que um simples transporte de pessoas. Ele tem sido um marco de valorização de muitas cidades pelo mundo afora, praticamente em todas as cidades francesas. Mas não tem sido uma alternativa considerada pelos municípios brasileiros, em função de seu alegado alto custo e prazo de implantação incompatível com os prazos políticos. Com exceção do Rio de Janeiro, que tem um VLT que revolucionou a Cidade em termos de renovação urbanística e a Baixada Santista, que também o adotou como uma alternativa ecológica, as nossas cidades têm preferido sistemas de ônibus, mais baratos e de menor prazo de implantação. São Paulo projeta uma ligação por BRT, do ABC até as linhas da CPTM e do Metrô que, no meu entender, deveria ser um VLT ou mesmo uma linha de metrô clássico. Monotrilho, não. Esta comprovou ser uma tecnologia inadequada, ineficaz e poluente. Os corredores Norte/Sul e Leste/Oeste de Goiânia, previstos para terem um VLT, são corredores de ônibus que degradam a região. O VLT de Cuiabá, prometido para operar em 2014, tem suas obras paralisadas há mais de 6 anos, com seus 40 veículos adquiridos e entregues, sujeitos à deterioração num pátio improvisado.
Por fim, como exemplo de um erro grave cometido por nosso Metrô de São Paulo, empresa considerada modelo de eficiência e credibilidade no Brasil e no mundo (que admiro e respeito demais, talvez porque ajudei a construir), esse nosso Metrô adotou erradamente, para suas Linhas 15 – Prata e 17- Ouro, por razões que desconheço e sem nenhum estudo prévio de engenharia e de viabilidade, uma tecnologia inédita no Brasil, o Monotrilho. Os problemas que tem apresentado o monotrilho na Linha 15, que está ainda numa operação parcial, são públicos e notórios e nem por isso ainda bem esclarecidos. Eu estou convencido que na ligação prevista de Vila Prudente a Cidade Tiradentes, o monotrilho não vai conseguir atender à oferta especificada de 48.000 passageiros por hora por sentido. Pergunto: por que não se adotou a tecnologia clássica de metrô, que comprovou sua grande eficiência nas outras linhas da rede? A alegada redução de custo não se comprovou. No monotrilho da Linha 17, que iria de Congonhas até o Morumbi, as preocupações são bem maiores. Além da linha estar paralisada por problemas técnicos e judiciais, não há garantia que vai operar adequadamente. Foi um erro que eu chamaria de “trágico”, porque manchou a imagem do Metrô e infelizmente não há como consertar. Só espero que o Metrô não cometa de novo um erro semelhante. E nesse contexto, mais uma pergunta que se coloca é: por que se adotou na Linha 17 uma tecnologia alienígena, poluente, que usa veículos com rodas de borracha, insegura e ineficiente como a do monotrilho, quando temos no Brasil uma tecnologia, genuinamente brasileira, o Aeromovel, que seria ideal para a Linha 17, considerando sua demanda de média capacidade?
O Aeromovel é um tipo de “People Mover”, desenvolvido no Brasil, no Rio Grande do Sul, com uma tecnologia inédita, que emprega o princípio exclusivo da propulsão pneumática, viabilizada por um fluxo de ar de baixa pressão e alta vazão. A propulsão utiliza ventiladores industriais estacionários, normalmente localizados junto às estações de passageiros. A pressão de ar atua sobre placas de propulsão fixas ao veículo, que se deslocam dentro do duto da via, resultando no empuxo de tração. A aplicação comercial internacional do Aeromovel foi em Jacarta – Indonésia, em operação desde abril de 1989 (sem nenhum problema ou incidente), e em Porto Alegre, conectando o Aeroporto Salgado Filho ao metrô da TRENSURB, em operação desde 2013, operação impecável. O Aeromovel se apresenta como um transporte de média capacidade, que está alinhado com as tendências tecnológicas do futuro, e que rejeita os equipamentos caros, complexos, ineficientes, ambientalmente e economicamente menos sustentáveis. É, portanto, o mais indicado para ser implantado em cidades brasileiras e torná-las desse modo mais inteligentes.
Assim, como se vê, não perdi as esperanças, apesar de meu pessimismo quanto ao panorama, sem precedentes, das cidades brasileiras durante e depois da pandemia. É só trabalhar para tornar nossas cidades mais inteligentes e não cometer os erros do passado, principalmente no que tange ao transporte público. Tenho fé que a médio e longo prazos, tudo será diferente. As cidades vão se reestruturar. Os urbanistas, nos seus projetos, vão ter que sanar os graves problemas habitacionais e tornar os ambientes mais verdes, mais abertos e mais seguros, levando em conta possíveis novos surtos sanitários. As calçadas serão mais largas e mais ciclovias serão construídas. No que tange ao transporte público nas grandes cidades, ele continuará a ser vital, principalmente para a população menos favorecida, mas vai ter que se reinventar para conseguir os recursos necessários. O diálogo entre os municípios das regiões metropolitanas vai ter que existir, com a criação obrigatória de uma autoridade única para a gestão dos transportes. O poder público vai ter que introduzir profundas modificações na sua política, no seu planejamento e nas suas prioridades em termos de transporte. Como será isso? Ninguém sabe com certeza. A esperança é que, passo a passo, nossas cidades vão se tornar mais inteligentes e não vão mais cometer os erros do passado. Por enquanto, tudo são “incertezas”.
Referências:
Peter Alouche: Metrô de São Paulo – Onde erramos? – Revista Engenharia
Marcus Coester e Peter Alouche: Aeromovel: tecnologia brasileira de ‘Automated People Mover’
Peter Alouche: Escolha do modo de transporte um desafio para uma cidade sustentável
*Engenheiro Peter Alouche – Consultor de Transporte – peter.alouche@uol.com.br – Engenheiro Eletricista, formado no Mackenzie, pós-graduado em Sistemas de Potência na Poli-USP, com diversos cursos de especialização em transporte público na Europa e Japão. Foi durante 35 anos Assessor Técnico da Presidência do Metrô de São Paulo para Projetos Estratégicos e Tecnológicos, representante da Companhia na UITP e no CoMET. Foi por 25 anos, professor titular de linhas de transmissão nas Escolas de Engenharia da FAAP e do Mackenzie. Hoje é Consultor independente nas áreas de tecnologia de Transporte. Tem inúmeros artigos publicados em revistas especializadas do Brasil e do exterior.
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