Em função de seu caráter essencialmente coletivo, uma vacina será nossa principal arma contra a Covid-19: além de proteger o indivíduo, esse tipo de tecnologia protege, também, sua comunidade ao impedir que ele se transforme em um vetor de contaminação
Seis meses após a declaração, pela Organização Mundial da Saúde, de que vivíamos a pandemia da Covid-19, muitas incertezas permanecem em relação ao comportamento do novo coronavírus e às estratégias para controlá-lo. Mas, se há algo que está muito claro, desde o começo, é que só é possível superar uma pandemia com conhecimento e solidariedade.
Desde iniciativas conjuntas para monitorar os impactos da Covid-19 até a adoção do acesso aberto por periódicos científicos e mídias tradicionais, há inúmeros exemplos de atitudes de cooperação que reforçam esse entendimento. E é esse espírito de solidariedade e colaboração que tem levado a ciência a avançar em uma velocidade impressionante. Já são mais de 190 estudos mapeados no desenvolvimento de vacinas contra o novo coronavírus, sendo que cinco delas já estão na fase III dos testes em humanos — a última antes do registro sanitário.
Em função de seu caráter essencialmente coletivo, uma vacina será nossa principal arma contra a Covid-19: além de proteger o indivíduo, esse tipo de tecnologia protege, também, sua comunidade ao impedir que ele se transforme em um vetor de contaminação. Por isso, há enorme expectativa mundial em torno de uma vacina que se comprove eficaz. Até o governo federal brasileiro, cuja resposta descoordenada à pandemia é marcada pela negação de sua gravidade e pela insistência em soluções sem respaldo científico, decidiu investir milhões de dólares na compra antecipada de doses de vacinas ainda em testes.
Em relação a esse tipo de tecnologia, a solidariedade e o esforço coletivo também estão muito presentes no seu desenvolvimento. Os estudos de fase III precisam de milhares de voluntários. Hoje, há mais de 100 mil pessoas ao redor do mundo contribuindo com seus corpos para o progresso da ciência — muitos deles são habitantes de países como o Brasil, que tem tido grandes dificuldades em controlar a pandemia, e, por isso, se tornaram alvo dos estudos clínicos.
Outra característica fundamental do desenvolvimento das vacinas que evidencia a participação da coletividade é o seu financiamento. Assim como no caso dos medicamentos, a maioria das pesquisas básicas relacionadas a vacinas é desenvolvida em universidades e laboratórios públicos e conta com significativo investimento público. Já as empresas farmacêuticas multinacionais costumam se envolver apenas nas últimas etapas do desenvolvimento, quando os riscos são bem menores e o retorno financeiro quase garantido.
As expressivas somas de investimento público na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias em saúde significam que bilhões de contribuintes, em todo o mundo, sustentam, colaborativamente, o sistema de inovação biomédica. Isso é especialmente relevante em países como o Brasil, onde um sistema tributário regressivo onera desproporcionalmente os mais pobres, que acabam se sacrificando mais para o financiamento do Estado.
Como temos um inimigo comum a toda a humanidade para combater, faz sentido que esse esforço seja mesmo coletivo. Neste mundo globalizado, só encontraremos, efetivamente, uma saída se todos sairmos juntos. Por isso, assim como não há fronteiras para o novo coronavírus, não devem existir fronteiras para enfrentá-lo. É preciso imunizar o mundo inteiro.
O individualismo na pandemia
Contudo, as notícias apontam que não há solidariedade quando os resultados desse intenso trabalho em equipe são, de fato, materializados em tecnologias em saúde. Pelo contrário, países e empresas têm apostado em um exclusivismo egoísta. Há, atualmente, uma grande corrida internacional pelo desenvolvimento da vacina, a qual tem sido vista como um trunfo geopolítico e como uma grande oportunidade de lucro.
As grandes empresas farmacêuticas encontram nesse trágico cenário uma oportunidade perfeita: se beneficiam de financiamentos públicos altíssimos, controlam a produção e distribuição das vacinas, fecham acordos de compra antecipadas e planejam a gestão global sobre a vida e a morte das pessoas. Como de costume, nossa saúde está, literalmente, dependendo da nossa capacidade de pagar por ela. Enquanto países ricos agem com brutalidade em defesa dos seus próprios interesses e países menos abastados se debatem para não serem completamente excluídos do acesso à vacina, os países ainda mais empobrecidos já se preparam para reviver os conhecidos ciclos de negligência aos quais estão historicamente submetidos.
Mas por que isso acontece? A possibilidade de uma tecnologia que contou com a participação da coletividade ser apropriada por poucos está ligada ao funcionamento do sistema de propriedade intelectual vigente. O movimento de acesso a medicamentos vem denunciando, há décadas, a falência desse sistema de inovação em saúde que trata tecnologias em saúde como se fossem simples mercadorias. Quantas vidas perdidas para o HIV, para a Hepatite C e para diversas outras enfermidades poderíamos ter evitado se as tecnologias para seu enfrentamento fossem livres para serem produzidas e distribuídas onde fossem necessárias? Tecnologias que podem salvar vidas, quando não são acessíveis àqueles que delas precisam, cumprem, afinal, o seu papel?
A vacina do povo
Por isso, inúmeras iniciativas surgiram em defesa de uma “vacina do povo” contra a Covid-19, amplamente acessível e livre de monopólios. Mas, por mais que diversas empresas e instituições tenham se pronunciado sobre a importância de garantir acesso universal e equitativo às vacinas e a outras tecnologias para enfrentar a pandemia, muitas delas têm ficado apenas no discurso — o que não muda, em nada, esse cenário injusto.
Entretanto, uma boa notícia é que, nem sempre, essas decisões precisam estar nas mãos dos executivos da indústria farmacêutica. Quando são as universidades e os institutos públicos que detêm as patentes sobre as tecnologias, o monopólio da indústria só pode ser garantido por um contrato de exclusividade com a entidade pública. A conhecida “vacina de Oxford” é um exemplo disso. Apesar de ter sido desenvolvida por uma universidade, com muito dinheiro público, as condições de produção e distribuição dessa tecnologia estão inteiramente nas mãos de uma única empresa farmacêutica — a AstraZeneca.
Diante do poder das universidades em evitar monopólios, estudantes, pesquisadores, artistas e ativistas de 29 países se juntaram na campanha global #FreeTheVaccine. Por meio dessa iniciativa, mais de 50 universidades do mundo têm sido convocadas a adotarem medidas concretas e a disponibilizarem amplamente seus conhecimentos contra o novo coronavírus.
E vem do Brasil um dos exemplos de iniciativas solidárias que nos fazem acreditar que há esperança de vencermos o individualismo. Assumindo com seriedade a sua participação no enfrentamento da pandemia, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) lançou uma modalidade gratuita de licenciamento de patentes e transferência de tecnologias. De acordo com a portaria 732/2020, o compartilhamento de tecnologias úteis no combate à Covid-19 poderá ser feito de forma não exclusiva e sem recebimento de royalties pela instituição. E, em contrapartida, os receptores da tecnologia deverão distribuir os seus produtos de forma ampla e com preço abaixo do mercado.
Cabe destacar que a UFPel toma esta decisão em um contexto bastante difícil para as universidades públicas no Brasil, as quais, apesar dos inúmeros obstáculos criados pelo próprio governo federal, têm se dedicado seriamente a minimizar os efeitos nocivos da Covid-19 no país. Sustenta, assim, corajosamente, a missão das universidades públicas de defender o interesse coletivo.
Através da campanha “Conhecimento sem cortes e sem monopólio”, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — que é a maior depositante de patentes em biotecnologia do país e a 5ª melhor universidade da América Latina — foi convocada por sua comunidade acadêmica a também adotar a solidariedade como princípio fundamental no compartilhamento de suas tecnologias.
Sendo o Brasil um dos países mais impactados pela Covid-19 e, historicamente, um dos mais prejudicados na saúde pelo atual sistema de propriedade intelectual, as universidades públicas brasileiras têm a possibilidade de liderar e inspirar um movimento global de resistência, baseado em uma nova forma de produzir e compartilhar conhecimento que coloque a vida humana acima dos interesses individuais. São elas que desenvolvem 95% da ciência em nosso país e investigam, inclusive, vacinas nacionais contra a Covid-19.
O Sistema Único de Saúde materializou, no Brasil, um pacto de solidariedade em torno da saúde. E, hoje, nossas universidades e institutos públicos de pesquisa encontram-se em um momento decisivo para honrar esse pacto ao denunciar e se contrapor a um sistema que prega o individualismo. Diante desse grave cenário, todos serão chamados a se posicionar e nenhuma resposta passará despercebida pela história. Não é tempo de fazer as coisas como sempre foram feitas. É hora de ter coragem e colocar em prática aquilo que já se sabe: o conhecimento, aliado à solidariedade, é a vacina mais eficaz contra uma pandemia.
Alan Rossi Silva é advogado e doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Luciana M. N. Lopes é farmacêutica e doutoranda em Saúde Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Representam a Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (UAEM), uma organização global de estudantes em defesa do acesso universal a medicamentos e de um sistema de inovação biomédico justo.
Leave a Reply